Foi em 1983 que estreou The Day After (O Dia Seguinte), um
filme que contava os possíveis horrores decorrentes de um evento nuclear. E eu
ainda lembro das filas nas calçadas em frente aos cinemas em Porto Alegre,
dobrando as esquinas. Em tempos de Guerra Fria, a ameaça nuclear era, ela mesma,
uma nuvem de radiação que evoluía sobre o planeta, espalhando medo e
insegurança. Todos temíamos a guerra nuclear. E aí, em 1986... “No dia 26 de
abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio
do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem
próximo à fronteira da Belarús. A catástrofe de Tchernóbil se converteu no mais
grave desastre tecnológico do século XX”. Quanto a nós, havíamos crescido num
mundo em que a União Soviética era uma espécie de caixa preta na qual se
ocultavam os mais obscuros segredos. As especulações varreram os jornais. O que
havia realmente acontecido em Tchernóbil? Qual o perigo que efetivamente nos
acossava a partir de Tchernóbil? Desde então, como ressalta Svetlana Aleksiévitch
no princípio de seu livro, “sobre o evento propriamente, já foram escritos
milhares de páginas e filmados centenas de milhares de metros em película”.
Portanto, não é sobre o acidente de Tchernóbil que o livro de Svetlana
discorre, mas sobre as vozes de Tchernóbil, sobre o mundo de Tchernóbil. “Eu me
dedico” – explica ela – “ao que chamaria de história omitida, aos rastros
imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo os relatos da
cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras”.
Vozes de Tchernóbil é composto por uma série de testemunhos,
de depoimentos de pessoas comuns que, de repente, tiveram suas vidas comuns
envolvidas no espanto do apocalipse atômico. Seus relatos são expostos de modo
cru e direto, sem adendos, sem esclarecimentos, sem explicações, numa sequência
mais ou menos dividida por temas, do princípio ao fim do volume. Vamos nos
deparar com uma comunidade predominantemente composta por camponeses em que os
habitantes são chamados a enfrentar, de modo heroico, de modo estúpido, uma realidade que não têm como assimilar. “Era
como quem luta contra o átomo com uma pá” – diz um deles. “A mente era incapaz
de dar conta do que estava acontecendo. Não me lembro de conversas sérias, só
de piadas” – conta outro. “O que se passou aqui é algo desconhecido. É outro
tipo de horror. Não se vê, não se ouve, não tem cheiro nem cor. No entanto, nós
mudamos física e psicologicamente. Alterou-se a fórmula do sangue, o código
genético, a paisagem” – aprofunda um terceiro.
O que Aleksiévitch faz em seu livro é bastante próximo do
trabalho de Claude Lanzmann no documentário Shoah, de 1985. Lanzmann chama os
sobreviventes do holocausto judeu durante a Segunda Guerra para que nos contem
suas experiências do período, que são enfileiradas num filme de mais de nove
horas, sem o acréscimo de qualquer cena adicional de época. Eu estou assistindo
ao documentário de Lanzmann agora, um pouco motivada pelo livro de
Aleksiévitch, e o efeito causado pelos dois no leitor e espectador é bastante
semelhante. Em Vozes de Tchernóbil, lá pelas tantas, começa-se a sentir um
certo aturdimento e é como se a repetição do sofrimento já estivesse deixando
de surtir resultado, já não abalasse mais. E é então que a autora nos sacode: “A
Secretaria de Turismo de Kíev oferece viagens turísticas a Tchernóbil. Foi
elaborado um itinerário que tem início na cidade morta de Prípiat. Lá, os
turistas podem observar os altos prédios abandonados com roupas enegrecidas nas
varandas e carrinhos de bebê”. A informação soa como uma bofetada, desnudando a
alma de quem lê. Há todo um sistema em que circulam as tragédias e que acaba
favorecendo a indiferença em relação a essas mesmas tragédias. “O horror se
tornou habitual, até mesmo banal. Nós nos transformamos de tal forma que o
horror que hoje passa nas telas precisa ser ainda mais terrível que o de ontem.
Caso contrário, não mete medo. Nós cruzamos a linha”.
Além de Shoah, Vozes de Tchernóbil também me trouxe à mente
uma experiência do ano passado, no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, quando
visitei uma instalação sonora de Janet Cardiff intitulada Forty Part Motet,
composta por diversos alto-falantes dispostos em círculo. Cada um deles irradia
uma única voz do grande coro que entoa uma complexa composição polifônica do século XVI. Assim, à
medida em que o visitante se aproxima e se afasta de cada um dos alto-falantes,
as combinações de vozes vão se alterando e produzindo diferentes modos de
percepção do todo. E eu fiz essa associação entre Cardiff e Aleksiévitch não
apenas pelo fato de que as duas trabalham com a mesma questão das vozes, mas
porque me parece que o livro de Svetlana tem muito menos a ver com a natureza de
uma narrativa que com a de grande parte da arte contemporânea: não se trata aqui de meramente ler
um texto, mas da necessidade de se passar por essa experiência. Ao final, a
edição brasileira da Companhia das Letras escolheu encerrar o volume com o
discurso feito pela escritora ao ganhar o Nobel, em 2015, o que se revela uma
feliz escolha na medida em que coloca Vozes de Tchernóbil em perspectiva dentro
do trabalho dela de uma forma mais ampla. E que venham outras traduções.