“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 18 de junho de 2016

Vozes de Tchernóbil – Svetlana Aleksiévitch


Foi em 1983 que estreou The Day After (O Dia Seguinte), um filme que contava os possíveis horrores decorrentes de um evento nuclear. E eu ainda lembro das filas nas calçadas em frente aos cinemas em Porto Alegre, dobrando as esquinas. Em tempos de Guerra Fria, a ameaça nuclear era, ela mesma, uma nuvem de radiação que evoluía sobre o planeta, espalhando medo e insegurança. Todos temíamos a guerra nuclear. E aí, em 1986... “No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem próximo à fronteira da Belarús. A catástrofe de Tchernóbil se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX”. Quanto a nós, havíamos crescido num mundo em que a União Soviética era uma espécie de caixa preta na qual se ocultavam os mais obscuros segredos. As especulações varreram os jornais. O que havia realmente acontecido em Tchernóbil? Qual o perigo que efetivamente nos acossava a partir de Tchernóbil? Desde então, como ressalta Svetlana Aleksiévitch no princípio de seu livro, “sobre o evento propriamente, já foram escritos milhares de páginas e filmados centenas de milhares de metros em película”. Portanto, não é sobre o acidente de Tchernóbil que o livro de Svetlana discorre, mas sobre as vozes de Tchernóbil, sobre o mundo de Tchernóbil. “Eu me dedico” – explica ela – “ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo os relatos da cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras”.

Vozes de Tchernóbil é composto por uma série de testemunhos, de depoimentos de pessoas comuns que, de repente, tiveram suas vidas comuns envolvidas no espanto do apocalipse atômico. Seus relatos são expostos de modo cru e direto, sem adendos, sem esclarecimentos, sem explicações, numa sequência mais ou menos dividida por temas, do princípio ao fim do volume. Vamos nos deparar com uma comunidade predominantemente composta por camponeses em que os habitantes são chamados a enfrentar, de modo heroico, de modo estúpido,  uma realidade que não têm como assimilar. “Era como quem luta contra o átomo com uma pá” – diz um deles. “A mente era incapaz de dar conta do que estava acontecendo. Não me lembro de conversas sérias, só de piadas” – conta outro. “O que se passou aqui é algo desconhecido. É outro tipo de horror. Não se vê, não se ouve, não tem cheiro nem cor. No entanto, nós mudamos física e psicologicamente. Alterou-se a fórmula do sangue, o código genético, a paisagem” – aprofunda um terceiro.

O que Aleksiévitch faz em seu livro é bastante próximo do trabalho de Claude Lanzmann no documentário Shoah, de 1985. Lanzmann chama os sobreviventes do holocausto judeu durante a Segunda Guerra para que nos contem suas experiências do período, que são enfileiradas num filme de mais de nove horas, sem o acréscimo de qualquer cena adicional de época. Eu estou assistindo ao documentário de Lanzmann agora, um pouco motivada pelo livro de Aleksiévitch, e o efeito causado pelos dois no leitor e espectador é bastante semelhante. Em Vozes de Tchernóbil, lá pelas tantas, começa-se a sentir um certo aturdimento e é como se a repetição do sofrimento já estivesse deixando de surtir resultado, já não abalasse mais. E é então que a autora nos sacode: “A Secretaria de Turismo de Kíev oferece viagens turísticas a Tchernóbil. Foi elaborado um itinerário que tem início na cidade morta de Prípiat. Lá, os turistas podem observar os altos prédios abandonados com roupas enegrecidas nas varandas e carrinhos de bebê”. A informação soa como uma bofetada, desnudando a alma de quem lê. Há todo um sistema em que circulam as tragédias e que acaba favorecendo a indiferença em relação a essas mesmas tragédias. “O horror se tornou habitual, até mesmo banal. Nós nos transformamos de tal forma que o horror que hoje passa nas telas precisa ser ainda mais terrível que o de ontem. Caso contrário, não mete medo. Nós cruzamos a linha”.


Além de Shoah, Vozes de Tchernóbil também me trouxe à mente uma experiência do ano passado, no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, quando visitei uma instalação sonora de Janet Cardiff intitulada Forty Part Motet, composta por diversos alto-falantes dispostos em círculo. Cada um deles irradia uma única voz do grande coro que entoa uma complexa composição polifônica do século XVI. Assim, à medida em que o visitante se aproxima e se afasta de cada um dos alto-falantes, as combinações de vozes vão se alterando e produzindo diferentes modos de percepção do todo. E eu fiz essa associação entre Cardiff e Aleksiévitch não apenas pelo fato de que as duas trabalham com a mesma questão das vozes, mas porque me parece que o livro de Svetlana tem muito menos a ver com a natureza de uma narrativa que com a de grande parte da arte contemporânea: não se trata aqui de meramente ler um texto, mas da necessidade de se passar por essa experiência. Ao final, a edição brasileira da Companhia das Letras escolheu encerrar o volume com o discurso feito pela escritora ao ganhar o Nobel, em 2015, o que se revela uma feliz escolha na medida em que coloca Vozes de Tchernóbil em perspectiva dentro do trabalho dela de uma forma mais ampla. E que venham outras traduções.