“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

quarta-feira, 9 de março de 2016

Tirza - Arnon Grunberg


Acho que a sensação que primeiramente tomou conta de mim, ao percorrer as páginas iniciais de Tirza, do holandês Arnon Grunberg, foi a de desconcerto, um desconcerto muito parecido com aquele a que me remetem os livros de J.M. Coetzee. Embora os personagens e as situações sejam absolutamente verossímeis, não consigo compreender as atitudes das pessoas e fico me perguntando, o tempo todo: Mas por que esse sujeito está fazendo isso? Por que ele age desse modo? E é assim que Tirza começa, pendendo um pouco para o ridículo enquanto nos apresenta uma família de classe média, mais ou menos banal, cheia de problemas mais ou menos triviais, e seu patriarca, Jörgen Hofmeester, um ex-editor sem sucesso na profissão, que foi abandonado pela mulher e cria sozinho duas filhas.

Só que lentamente as coisas vão evoluindo no livro de Grunberg. Pequenos fatos vão emergindo aqui e ali, pontas de iceberg, informações que meio que irrompem do nada. À medida em que novos dados vão dando uma consistência bem bizarra à personalidade de Hofmeester e ao cotidiano de sua família, o leitor se vê jogado num ambiente de tensão constante, em que se pressente que algo terrível pode (e vai) acontecer a qualquer momento. De modo implacável (às vezes, durante a leitura, eu sentia meu estômago embrulhar), Grunberg despedaça seu protagonista sem dó nem piedade diante de nossos olhos, num exercício em que comédia e tragédia se atravessam, expondo um Hofmeester afogado num pântano de contradições, numa vida e num tempo que o esmagam.

Há muita coisa sendo discutida neste livro. Há a questão de gênero, circunscrita nas palavras que apontam para o personagem em sua relação com a mulher e as filhas: o “capataz”, o “guardião”. Há o homem engolfado pelas contingências políticas e econômicas de um mundo que muda muito depressa. Há as próprias alterações nos costumes, fazendo Hofmeester vagar atarantado entre a casa e o jardim enquanto tenta inutilmente explicar-se o universo dos jovens, da esposa, do trabalho, da escola, dele mesmo, de todos os que o cercam. Mas o que me parece mais interessante é a forma como o tema da liberdade parece estar sempre despontando de forma periférica. Há referências a ela ao longo de todo o texto: “Pois liberdade e fome eram inimigas mútuas”, “Em sua imitação dele, em seu exagero às vezes grotesco, estava sua liberdade”, “A liberdade que de repente lhe era concedida parecia um deserto”. No entanto, os personagens não discutem a liberdade diretamente e mostram-se alheios às questões vitais que parecem encurralá-los: O que é a liberdade? Onde se encontra? Como alcançá-la? O que fazer com ela? Para que serve ser livre?  Ninguém se aprofunda no que parece ser aquilo por que todos se debatem, de uma forma ou de outra. E Hofmeester, que tem a vida toda sob controle, de repente descobre que pode levar uma rasteira da liberdade: “[...] ali ele sentia o verdadeiro gosto da liberdade: bílis”.

Tirza é um livro intenso, para ser lido quase com o corpo (eu o li cheia de inquietude, agitada, profundamente incomodada). E eu acho que não saber muito sobre sua trama ajuda a tornar ainda mais memorável esta experiência de leitura. Sem dúvida alguma, um dos melhores romances que eu li nos últimos tempos. Mesmo.



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