“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 14 de maio de 2016

F. - Antônio Xerxenesky


A Editora Rocco publicou F., de Antônio Xerxenesky, em 2014. A história do livro, porém, acontece nos gloriosos anos 80, a década em que o Brasil deu adeus à ditadura, um período de novos tempos, pelo rock, pelo surgimento dos computadores, pelo nascimento do CD. Esperava-se muito do futuro nos anos 80 e, em primeiro lugar, parece ser com a ideia de esperança e desesperança que Xerxenesky está trabalhando em seu livro. A protagonista, Ana, é uma assassina tentando elaborar a memória de um pai também assassino (“ele me contou que meu pai era conhecido pela simpática alcunha de Doutor Eletrochoque e que o seu incrível talento para a engenharia era utilizado para modificar aparelhos e desenvolver sistemas aprimorados de tortura”). As mortes cometidas pela própria Ana, porém, têm pouco do horror ligado aos dramas da tortura: são gráficas e cinematográficas, um tanto cômicas, um pouco exóticas. Ana é uma deturpação, uma falsificação do pai assassino, o que é engraçado e também melancólico, porque Ana é uma ficção que a gente não consegue esquecer, em nenhum momento, que é ficção – e me parece que é essa mesmo a intenção do romance.

Lá pelas tantas, a matadora Ana é contratada para assassinar – pasmem – Orson Welles. E é quando se escancara a grande brincadeira do livro, quando o texto começa a jogar com um filme de Welles, de 1973, chamado “F for Fake”. Eu revi F for Fake há pouco, para acompanhar um trabalho de aula, e ele exatamente levanta uma série de questões a respeito de originalidade/falsificação. Xerxenesky faz com que se atravessem a vida de Ana e os filmes de Welles, a tarefa de Ana e as motivações de Welles, numa evocação dos atravessamentos entre alta e baixa cultura que são outro dos motes do romance. Afinal, Ana é uma assassina que metodicamente cita versos de Drummmond para se acalmar antes de puxar o gatilho.


A articulação F./F for Fake funciona bem: prende a atenção do leitor, curioso para saber de que jeito será desatado esse nó entre realidade e ficção. A falsidade do personagem Ana também funciona bem: Ana é uma estranha metáfora de si mesma e do próprio livro. O que não funciona bem, o que parece desandar é o rumo que a narrativa toma na terceira parte. Quando Xerxenesky desvia o foco do F de ficção e centra suas luzes no F de futuro (encontrei um vídeo no Youtube em que ele diz que o F do título aponta também para estes dois temas) o texto perde o ritmo, perde o interesse. Certamente, a ideia era mesmo a de produzir uma história inconclusiva, mas o inconclusivo aí frustra o leitor. Ana diz, sobre F for Fake: “Orson revela que a parte final de seu documentário é toda composta de mentiras”. Já o F. de Antônio Xerxenesky parece resvalar, bem em sua parte final, para o lado das verdades, o que dá uma enorme sensação de desamparo, parece que a trama dá uma volta sobre si mesma e acaba traindo as próprias intenções. Mas talvez eu pense isso apenas porque sou uma pessoa que acredita firmemente nas ficções. Ana comenta: “Assisti a Cidadão Kane e isso não me salvou”. Como assim?! Bem, eis aí alguém que é muito diferente de mim – com certeza. 

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