Primeiras frases de A história dos meus dentes, de Valeria
Luiselli: “Sou o melhor leiloeiro do mundo. Mas ninguém sabe disso porque sou
um homem comedido”. Pensei: nossa!, isso é a história da minha vida! E ri. Mas
não era a história da minha vida: graças a Deus, é bem mais interessante do que
isso. Na verdade, o livro começou a nascer em 2013, quando Luiselli foi
convidada para produzir um texto para o catálogo de uma exposição de arte na
Galeria Jumex, localizada no bairro de Ecatepec, arredores da Cidade do México.
Recorro às palavras dela para explicar melhor: “A coleção Jumex, uma das
maiores e mais importantes coleções de arte contemporânea do mundo, é
financiada pela fábrica de sucos Jumex, também situada em Ecatepec. Há,
naturalmente, uma grande distância entre estes mundos: galeria e fábrica;
artistas e operários; obra e sucos. Como iria traçar pontes entre eles?” E
então ela monta um processo para interagir com os operários da fábrica e, a
partir desse movimento, escrever o texto da exposição. Não vou contar como é,
porque acho que parte do prazer de ler o livro está em descobrir – lá no fim,
num apêndice – como ele foi feito. Vou contar que A história dos meus dentes é
o resultado desse processo, uma brincadeira séria em forma de romance que
reflete sobre a vida dos objetos e a produção de valor e significado em arte e
literatura.
“Esta é a história dos meus dentes” – diz Gustavo Sánchez
Sánchez, mais conhecido como Estrada. – “É meu ensaio sobre os colecionáveis e
o valor inconstante dos objetos”. E Sánchez (ou Estrada) nos leva a embarcar em
sua trajetória de empregado como segurança de fábrica cujo maior sonho é poder
arrumar os dentes. Mas Sánchez não tem dinheiro para arrumar os dentes. Então,
quando surge para o personagem a oportunidade de mudar de profissão, tornando-se
leiloeiro, ele encontra, além de um caminho de vida, as condições financeiras
para realização de seu sonho. Sánchez tem muita sorte e acaba conseguindo
comprar, num leilão, os dentes que foram de Marilyn Monroe. Ele torna-se um homem
realizado e um leiloeiro excepcional. “Eu não era um vil vendedor de objetos, e
sim, antes de mais nada, um amante e colecionador de boas histórias, que é a
única maneira realmente honesta de modificar o valor de um objeto” – considera.
O tempo todo em que eu lia o livro de Luiselli pensei numa
pintora espanhola de que gosto muito, chamada Remedios Varo. Pensei nela,
claro, porque Remedios Varo viveu muitos anos no México, mas também porque os
cenários surrealistas de seus quadros, oníricos, que misturam ciência e
fantasia e são cheios de referências à alquimia e à literatura gótica me
parecem ter muito a ver com o ambiente da vida de Sánchez. É tudo meio louco e
um tanto divertido, mas também apontando para o trabalho de inúmeros escritores
e artistas, que dão nome a uma multidão de “tios” de Sánchez, a cuja sabedoria
e memória ele recorre quando necessário ao longo de suas narrativas. E as
narrativas são outros itens “colecionáveis” nesse mundo em que os objetos têm alma
e um coração que bate. “Foi no Segredo da Noite que Estrada começou a pôr em
prática o seu famoso método alegórico, que tinha concebido anos antes, em que
não se leiloavam objetos, e sim as histórias que davam valor e significado aos objetos.
As alegóricas, segundo Estrada, eram os ‘leilões pós capitalistas de reciclagem
radical que salvariam o mundo da sua condição de lixeira da história’.” O
interessante é que a fala, através das histórias contadas, anima os objetos
mortos, mas também os dentes cumprem um papel aí, como “objetos” essenciais à
articulação da fala: sem eles, não se fala direito. Não, A história dos meus
dentes não é a história da minha vida, mas uma história sobre como são as
histórias, sempre, que justificam todas as nossas vidas.
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