“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 30 de julho de 2016

Morte súbita - Álvaro Enrique


Outro dia, eu e M. almoçamos num restaurante aqui de Porto Alegre onde antes funcionava um cinema (pelo menos não virou igreja). E conversávamos sobre os tantos filmes que já tínhamos visto naquele lugar. (“Lembra daquele filme terrível do Pasolini?” Salò. Eu não aguentei e saí no meio da exibição. Fiquei esperando por ela na calçada em frente ao cinema.) Aí uma garota, sentada na mesa ao lado, entrou no papo, contando que ela e alguns colegas da faculdade tinham criado um grupo para debater sobre os filmes e nos convidou para participar. Falo isso porque eu acho que o cinema é uma prática que funda espécies de seitas iniciáticas de níveis diversos que acabam definindo e aproximando as pessoas. Acho, por exemplo, que o cinema, para mim, é uma prática muito mais definidora que a leitura. A diferença é que o cinema está mais no mundo. Se eu não escrever um blog sobre livros, me sinto ilhada na minha paixão. E acho que esse trânsito de afinidades, esse compartilhamento também acontece com o esporte. Pensei num livro lançado aqui no ano passado, de David Foster Wallace, chamado Graça Infinita, cujo núcleo central é formado por uma família de tenistas, uma estirpe muito peculiar de jogadores de tênis. E, agora, pensei que o tênis deve mesmo ser um esporte bom para mobilizar afetos, porque aparece, de novo, no livro de Álvaro Enrique, ainda que de modo bem diferente que em Graça Infinita.

“O brioso pintor barroco Michelangelo Merisi da Caravaggio, muito dado ao jogo, viveu seus últimos anos no exílio por ter deixado um adversário varado por espada numa quadra de tênis. A rua onde o crime aconteceu até hoje se chama Via dela Pallacorda – rua da ‘bola-rede’ – em memória do incidente”. Caravaggio foi condenado à morte por decapitação – e depois perdoado, tarde demais – devido ao episódio. Desse pequeno trecho, porém, é possível destacar algumas das linhas que conduzem a trama no livro de Enrique. Como pano de fundo, temos uma partida de tênis – um duelo – travada, em 1599, entre Caravaggio e o poeta espanhol Francisco de Quevedo. Nos intervalos em que transcorre o jogo, é como se a bola se evadisse da quadra, levando-nos a pontos diversos na narrativa maior do mundo. Nesses momentos, partida e existência se entrelaçam, jogar e viver, duelar (confrontando a tensão do instante) e existir (refletindo a distensão da eternidade). Enrique reflete: “Não sei, enquanto escrevo este livro, sobre o que ele é. O que ele conta. Não é exatamente sobre uma partida de tênis. Também não é um livro sobre a lenta e misteriosa integração da América àquilo que chamamos, com obscena desorientação, ‘o mundo ocidental’ – para os americanos, a Europa fica no Oriente. Talvez seja um livro que trata apenas de como este livro poderia ser contado, talvez todos os livros tratem apenas disso. Um livro com vaivéns, como um jogo de tênis”.

Há a expressão “morte súbita”, relativa a um lance do tênis, mas que também pode ser ligada à ameaça da degola que paira sobre o pintor italiano. E o autor se demora na descrição das degolas retratadas nos quadros de Caravaggio. E se demora também nas considerações acerca da degola de outro personagem histórico importante: Ana Bolena, a mulher de Henrique VIII, informando-nos que as tranças de Ana Bolena foram usadas para confecção de quatro bolas de tênis, a mando de seu algoz, o francês Jean Rombaud. As bolas que enfeixam os nobres cabelos da rainha morta originam um outro movimento atrás do qual também se lança a história, o que me fez lembrar de Submundo, de Don DeLillo. Publicado em 1997, Submundo nos põe a correr atrás da bola desaparecida em uma partida mítica de beisebol travada em 1951. E DeLillo também associa as circunstâncias do jogo à pintura, evocando O triunfo da morte, de Pieter Bruegel, para nos fazer sentir o drama de um momento único que terá desdobramentos por seu livro inteiro.


Submundo é uma obra magnífica. Morte súbita também. Enrique trabalha com a ideia da bola apontando para o “espírito que vai e vem entre o bem e o mal tentando entrar no céu”. Mas vai além disso. Tive a impressão de sentir que, entre os dois oponentes, sua simpatia pende para o lado de Caravaggio (ou é a minha que pende, talvez). Mas o modo como fala sobre os quadros do italiano consegue emular a própria pintura do artista, colocando-nos no centro de uma aventura dramática plena de jogos de luz e armadilhas do movimento, acendendo diante de nós “a fogueira da modernidade que se instala”. Como os quadros de Caravaggio, o romance é atravessado pela violência, pela sujeira, pela crueza da vida real. Há êxtase e asco por toda parte. “Caravaggio foi para a pintura o que Galileu foi para a física: alguém que abriu os olhos e disse o que estava vendo; alguém que descobriu que as formas no espaço não são alegorias de nada além de si mesmas e isso basta; alguém que entendeu que o verdadeiro mistério das forças que controlam nossa maneira de habitar o mundo não reside em serem elevadas, e sim elementares”. Sua vida tem servido de tema a livros e filmes. Em seu romance, talvez  Enrique tenha apenas nos querido alertar para o fato de que, “no inferno, as almas e os livros são bolas. Os demônios jogam com elas”. E não são os bons que ganham as partidas da história, infelizmente.

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