Edmund de Waal é um ceramista inglês. Eu não conhecia o
trabalho dele. Procurando na Internet, descobri obras em porcelana muito
elegantes e despojadas, minimalistas, bem próximas do que o senso comum nos
habituou a associar não apenas a uma estética japonesa, mas a um modo zen de
olhar a vida. Não entendo muito disso. Talvez seja só senso comum mesmo.
Acontece que De Waal é um sujeito que, lá pelas tantas, recebeu, como herança
de família, uma coleção com 264 netsuquês, esculturinhas de cerca de 5 cm,
esculpidas em madeira ou marfim, objetos que os japoneses usavam como enfeite e
que também serviam para prender uma pequena bolsa à faixa do quimono. Voltei à
Internet: são pecinhas lindas, muito vívidas, dá vontade de passar a mão nelas,
de tê-las em casa. E De Waal se apaixonou por aquelas coisinhas. E se apaixonou
tanto que se dispôs a refazer o caminho da coleção, a retraçar a trajetória dos
netsuquês – esses objetinhos desconcertantes – desde o momento em que começam a
fazer parte de sua família. “Quero saber o que este objeto testemunhou” – diz.
Li vários textos comparando o livro que Edmund de Waal
escreveu para relatar sua aventura – A lebre com olhos de âmbar – com Proust. A
escrita não é a de Proust – anacronismo que eu também acho que não faria nenhum
sentido. Mas o movimento é. Porque a partir da experiência sensorial com os
netsuquês – como acontece com as madeleines, no Em busca do Tempo Perdido – De
Waal nos conta toda a história de sua família, refazendo, como Proust, um
exercício de “entrelaçar sensual, sinuoso, das coisas com as lembranças”. Ele
cogita: “Deve haver algures uma literatura sobre o tato, creio; alguém há de
ter registrado em diário ou cartas o momento fugaz em que sentiram algo em suas
mãos. Deve ainda haver sinal dessas mãos em algum lugar”. Seu livro consegue
recriar essa relação entre a mão e o objeto de uma maneira inusitada, não falando
nisso, mas acendendo vida em torno às pequenas esculturas que simplesmente
jazem num recolhimento meditativo, como um vórtice de silêncio desenhado pelo
homem na matéria dura.
“Sei que esses netsuquês foram comprados em Paris nos anos
1870 por um primo do meu bisavô chamado Charles Ephrussi”. Os Ephrussi são uma
dinastia de banqueiros judeus. Charles Ephrussi foi um colecionador de arte
riquíssimo, que aparece em quadros de pintores impressionistas, de quem era
amigo, e que teria sido um dos modelos de Proust para o Swann da Recherche –
sim, os dois se conheciam. A família de De Waal é muito interessante. Estar aí
com Charles nos dá a oportunidade de observar de perto a chegada da onda do
japonismo à França, movimento crucial no desenvolvimento da pintura impressionista.
E faz com que a história comece como um conto de fadas movido pelo dinheiro que
dá acesso à arte, à poesia, à música e a uma vida de coisas belas. Mas os
netsuquês viajam. Vão parar em Viena. Os nazistas invadem a Áustria.
“Os objetos agora serão manipulados com cuidado. Cada
castiçal de prata será pesado. Cada garfo ou colher contabilizado. Cada
vitrine, aberta. As marcas na base de cada peça de porcelana são anotadas. Um
erudito ponto de interrogação é aposto à descrição de um desenho atribuído a um
Velho Mestre; as dimensões de um quadro serão recalculadas e corretamente
tomadas. E enquanto tudo isso ocorre, seus donos anteriores têm as costelas
quebradas e os dentes esmurrados. Os judeus têm menos importância que as coisas
que um dia possuíram”.
Foi particularmente significativo, para mim, ter lido esse
livro no mesmo mês em que vi Francofonia, o novo filme de Alexandr Sokurov que
problematiza justamente o episódio do Louvre ameaçado pelos nazistas durante a
Segunda Guerra. Acho complicado pensar nessa relação que se estabelece entre
arte e civilização em tempos de guerra. Os estados assassinam milhões de
pessoas, mas param e se curvam diante da Mona Lisa, prestam reverência ao
objeto que encarna um marco de humanismo e civilidade. Tinha isso em mente ao
sair da sessão de Francofonia. Tenho isso em mente ao concluir o livro de De
Waal. Objetos alçados à condição de totem são signo de sensibilidade ao mesmo
tempo em que podem desnudar uma profunda indiferença em relação ao destino
humano. E isso dá o que pensar – dá mesmo.
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