“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 13 de agosto de 2016

O sol é para todos - Harper Lee


Durante muitos anos Harper Lee foi a clássica escritora de um único clássico, aquela figura que escreve um livro de grande expressão e repercussão e a seguir deixa de publicar, retirando-se do mundo da literatura. O sol é para todos, que denuncia um caso de racismo ocorrido no sul dos Estados Unidos na época da depressão, ganhou o Pulitzer de 1961 e se transformou numa espécie de sucesso instantâneo. Sua sequência – Vá, coloque um vigia – só viria a público em 2015. E eu queria ler O sol é para todos há muito tempo, mas... O tempo é uma coisa que nunca está do lado dos leitores. Por outro lado, fiquei pensando que nossa experiência de vida nesse momento meio ingrato em que uma onda conservadora se abate sobre o planeta talvez torne esta uma leitura mais produtiva do que seria normalmente.

A história é contada do ponto de vista de uma menina que cresce numa cidadezinha dos Estados Unidos à sombra da imagem do pai – Atticus Finch –, o paradigma da voz da razão num mundo bem difícil, um advogado justo, uma pessoa cheia de valores nobres por quem ela sente uma imensa admiração. E o livro se divide em duas partes. Na primeira, Scout – a menina – nos pinta um retrato do lugarejo e de seus habitantes. “No calor, as pessoas se movimentavam devagar. Andavam pela praça com esforço, entravam e saíam das lojas se arrastando, demoravam para fazer qualquer coisa. Os dias tinham vinte e quatro horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha pressa, pois não havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem nada para ver nos arredores de Maycomb”. É a melhor parte do romance, aquela em que a escrita de Lee parece estar mais à vontade. Para quem, como eu, cresceu numa cidade do interior, a autora descreve um universo bem familiar, que por um lado é divertido em seus preconceitos quase caricaturais, sua resistência à mudança, na persona petrificada de alguns tipos que são bem próprios desse ambiente. Por outro, ela também consegue apontar para o potencial de violência e crueldade que pulsa sob uma superfície de ignorância, religiosidade pragmática e insensibilidade perante quem destoa da norma.


É na segunda parte que explode esse mecanismo cheio de contradições, quando Finch é designado para defender no tribunal um negro acusado de estuprar uma mulher branca. Acossado pela comunidade, ele atravessa seu dever com o brio dos éticos. E a escrita de Lee perde um pouco o brilho, a meu ver. Tive a impressão de que a trama demora um pouco a definir o tom certo, correndo um sério risco, em alguns pontos, de resvalar para o melodrama. Lá pelas tantas o texto se encontra, mas me parece que o livro é até mais interessante pelo que há de periférico nele do que por sua narrativa central, talvez porque já tenhamos acompanhado muitas histórias como essa (ainda que saibamos que jamais é o bastante), tanto na literatura como no cinema (O sol é para todos foi adaptado já em 1962). Ele é bom em desnudar a mesquinharia das pessoas de bem, o clima de dano iminente que circula ao redor dessa autoestima implacável dos respeitáveis que os torna incapazes de autocrítica. No desfecho, porém, paira a sensação de que existem gradações na semelhança e que mesmo os justos são mais justos com seus mais iguais. Nesse sentido talvez o tiro saia pela culatra, seja mais revelador do que deveria. “Cheguei à conclusão” – termina Scout – “de que as pessoas eram estranhas. Por isso, mantinha distância e só pensava nelas quando era obrigada”. Pois é.

Um comentário:

  1. Muito boa a tua resenha! Li ano passado, e de certa forma esperava mais da trama central... mas gostei do livro. Nem sabia que tinha uma sequência.
    Enfim, passei por aqui pra ver se, quem sabe, não tinha atualizado hehe
    Beijo!

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