Durante muitos anos Harper Lee foi a clássica escritora de
um único clássico, aquela figura que escreve um livro de grande expressão e
repercussão e a seguir deixa de publicar, retirando-se do mundo da literatura.
O sol é para todos, que denuncia um caso de racismo ocorrido no sul dos Estados
Unidos na época da depressão, ganhou o Pulitzer de 1961 e se transformou numa
espécie de sucesso instantâneo. Sua sequência – Vá, coloque um vigia – só viria
a público em 2015. E eu queria ler O sol é para todos há muito tempo, mas... O
tempo é uma coisa que nunca está do lado dos leitores. Por outro lado, fiquei
pensando que nossa experiência de vida nesse momento meio ingrato em que uma
onda conservadora se abate sobre o planeta talvez torne esta uma leitura mais
produtiva do que seria normalmente.
A história é contada do ponto de vista de uma menina que
cresce numa cidadezinha dos Estados Unidos à sombra da imagem do pai – Atticus
Finch –, o paradigma da voz da razão num mundo bem difícil, um advogado justo,
uma pessoa cheia de valores nobres por quem ela sente uma imensa admiração. E o
livro se divide em duas partes. Na primeira, Scout – a menina – nos pinta um
retrato do lugarejo e de seus habitantes. “No calor, as pessoas se movimentavam
devagar. Andavam pela praça com esforço, entravam e saíam das lojas se
arrastando, demoravam para fazer qualquer coisa. Os dias tinham vinte e quatro
horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha pressa, pois não
havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem nada para ver nos
arredores de Maycomb”. É a melhor parte do romance, aquela em que a escrita de
Lee parece estar mais à vontade. Para quem, como eu, cresceu numa cidade do
interior, a autora descreve um universo bem familiar, que por um lado é
divertido em seus preconceitos quase caricaturais, sua resistência à mudança,
na persona petrificada de alguns tipos que são bem próprios desse ambiente. Por
outro, ela também consegue apontar para o potencial de violência e crueldade
que pulsa sob uma superfície de ignorância, religiosidade pragmática e
insensibilidade perante quem destoa da norma.
É na segunda parte que explode esse mecanismo cheio de
contradições, quando Finch é designado para defender no tribunal um negro
acusado de estuprar uma mulher branca. Acossado pela comunidade, ele atravessa
seu dever com o brio dos éticos. E a escrita de Lee perde um pouco o brilho, a
meu ver. Tive a impressão de que a trama demora um pouco a definir o tom certo,
correndo um sério risco, em alguns pontos, de resvalar para o melodrama. Lá pelas tantas o texto se encontra, mas me parece que o livro é até mais interessante
pelo que há de periférico nele do que por sua narrativa central, talvez porque
já tenhamos acompanhado muitas histórias como essa (ainda que saibamos que
jamais é o bastante), tanto na literatura como no cinema (O sol é para todos
foi adaptado já em 1962). Ele é bom em desnudar a mesquinharia das pessoas
de bem, o clima de dano iminente que circula ao redor dessa autoestima
implacável dos respeitáveis que os torna incapazes de autocrítica. No desfecho,
porém, paira a sensação de que existem gradações na semelhança e que mesmo os justos são mais justos com seus mais iguais. Nesse sentido talvez o tiro saia pela culatra, seja
mais revelador do que deveria. “Cheguei à conclusão” – termina Scout – “de que as
pessoas eram estranhas. Por isso, mantinha distância e só pensava nelas quando
era obrigada”. Pois é.
Muito boa a tua resenha! Li ano passado, e de certa forma esperava mais da trama central... mas gostei do livro. Nem sabia que tinha uma sequência.
ResponderExcluirEnfim, passei por aqui pra ver se, quem sabe, não tinha atualizado hehe
Beijo!